Seminovos e usados

EM TENTATIVA

Pessoal

Mora no Rio de Janeiro. Carioca adotivo, faz umas coisas por aí e já quis escrever com alguma disciplina, razão de ser desse blogue.

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No cabeçalho do blogue são três britânicos vasculhando os destroços da biblioteca de Holland House, em Londres, outubro de 1940, após bombardeio alemão. Nove em cada nove espíritos elevados concordam que entre uma bomba e outra há sempre espaço para uma flûte de champagne, um passeio de olhos em prateleiras repletas de livros e uma boa leitura. Sem dúvida.

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sexta-feira, setembro 24, 2004

GENÉTICA

- Você já reparou no jeito que o nosso filho ri?
- Como assim “no jeito que nosso filho ri”?
- É. Ele ri do jeito que ria um amigo meu da época de colégio, de olho fechado.
- “Olho fechado”?
- Isso. Apertando os olhos toda vez que ri.
- Mas o que tem demais nisso? Cada pessoa ri do jeito que quer, ora bolas.
- Nada disso. O jeito que a pessoa ri sempre gera conseqüências para ela. Esse meu amigo, por exemplo, até hoje é conhecido como o filho bastardo do japonês gozado. Não quero isso para o meu filho.
- Não tem nada desse papo de filho de japonês. Esse jeito de rir ele herdou do avô. Papai é quem ria desse jeito.
- Estranho, não me lembro de seu pai rindo.
- Mas era desse jeito que ele ria.
- Você não disse outro dia que seu pai não costumava rir por causa de uns problemas quando ele era criança. Que a mãe dele tinha muitos filhos, tinha que cuidar da vida, não podia ser amorosa com todos os quinze, e isto, e aquilo?
- Disse. É o que dizia mamãe sempre que parecia que meu pai tinha feito uma opção monástica pela cara fechada.
- E você não costuma dizer que seu pai tinha um grande senso de humor?
- Digo e repito. Não ser dado a risos não impedia ele de ser muito bem humorado. E daí?
- Daí que se o humor leva ao riso, seu pai deveria ter motivos para rir, não deveria?
- Visto desse jeito, sim, deveria. E daí?
- Daí que essa estória da sua mãe de que seu pai não ria porque não tinha recebido atenção da mãe quando criança não é o que explica a sisudez de seu pai.
- Do que você está falando?
- Seu pai parou de rir por outra razão.
- E qual seria essa razão?
- Seu pai fez uma opção.
- Opção?
- Enxergar a rir.
- O quê?
- Enxergar a rir. Quando ele ria seus olhos fechavam, então ele optou por continuar enxergando a rir.
- Quando eu penso que já ouvi todas as bobagens que deveria ouvir em vida, você me vem com essa?
- E nosso filho um dia vai também ter que se decidir por um dos dois.
- Você é louco! Meu pai teve uma infância difícil, sem amor dos pais, começou a trabalhar cedo, depois estudou, só se casou quando já tinha juntado algum patrimônio, já mais velho. Do que você queria que ele risse?
- Olha, essa sua versão da estória é até boa para quando a gente tiver que ensinar para o menino o valor do trabalho, sua ética, “primeiro a obrigação depois a diversão”, “ganharás o pão com o suor do seu rosto” e tudo o mais. Mas um dia ele vai ter que saber a verdade.
- Que verdade? Do que você está falando?
- Que seu pai preferiu enxergar a rir. E que ele também vai precisar escolher um dia.
- Você quando pega idéia fixa fica insuportável.
- Ouve que é importante. Nesse dia ele pode optar por rir e daí é muito importante.
- Tá bem. O que de tão importante você ainda quer dizer?
- Que ele não dê carona.
- Carona? Não dê carona?
- Nunca.
- ?
- Pra quem conte piadas ao motorista enquanto este dirige. Vê o risco?
- Você é mesmo uma besta! Devia ter te interrompido lá no começo dessa conversa. Onde já se viu ficar agourando o próprio filho?
- Não é questão de agourar. É preocupação.
- Chega! Vou até sair de perto. Vem, meu filho, que seu pai hoje não é boa companhia pra gente. Um trabalhão para pôr um bebê no mundo e vem esse aí despejar essa besteirada em cima da gente. Isso, filhinho, beija a mamãe. Isso. Agora tira o sorrisinho do rosto. Isso. Fica sério. Que nem o vovô no retrato... Que é muito perigoso isso de deixar o bebê rindo e apertando o olho... Sério.