Seminovos e usados

EM TENTATIVA

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Mora no Rio de Janeiro. Carioca adotivo, faz umas coisas por aí e já quis escrever com alguma disciplina, razão de ser desse blogue.

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No cabeçalho do blogue são três britânicos vasculhando os destroços da biblioteca de Holland House, em Londres, outubro de 1940, após bombardeio alemão. Nove em cada nove espíritos elevados concordam que entre uma bomba e outra há sempre espaço para uma flûte de champagne, um passeio de olhos em prateleiras repletas de livros e uma boa leitura. Sem dúvida.

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terça-feira, outubro 05, 2004

OS MORADORES DE SANTA TERESA AMAM O BONDE

Pedro amava Mariazinha.

Desde que a viu sentada na escada que conduz ao saguão de entrada do edifício na rua Joaquim Murtinho, em que moravam ela e uma tia de Pedro, ele soube que a amava.

Naquele dia, Mariazinha segurava um aquário em que jazia morto um singelo peixinho dourado. Ali mesmo Pedro apresentou-se, oferecendo seu lenço para as lágrimas que ela derramava pelo terceiro peixinho dourado morto nos últimos seis meses. Dizia-se culpada e Pedro tentou demovê-la de tal idéia.

Pessoas que matam em seqüência peixinhos deixados sob seus cuidados em algum momento terminam por se julgar culpadas por tais mortes. Homens apaixonados são capazes de desculpar até mesmo a morte de peixinhos inocentes.

Uma semana e duas idas ao cinema depois, começaram a namorar. Parecia que haviam nascido para dividir suas vidas um com o outro. Falavam-se ao telefone cerca de quatorze vezes por dia, chamavam-se por alcunhas melosas e assistiam juntos às reprises do seriado Friends regozijando-se da vida repleta de aventuras dos protagonistas.

Ainda assim o romance dos dois encontrou seu fim.

Ao menos para Mariazinha, que foi quem propôs o término, angustiada com a responsabilidade de ter o amor de Pedro sob seus cuidados.

Parentes mais velhos gostam de proferir ditados. A mãe de Pedro dizia:

- Não há mal que sempre dure, nem bem que não se acabe.

Ao que sua avó retrucava:

- Não há bem que não se acabe, nem mal que não piore.

Pedro lembrava dos profundos ensinamentos de sua genitora e da genitora desta enquanto repetia para si mesmo que amava Mariazinha.

Resolvera voltar para casa, em Santa Teresa, a pé e, após subir a Cândido Mendes, caminhava a esmo pela Almirante Alexandrino pensando em seu grande amor e na inutilidade da vida, desnecessário capricho ante a fugacidade das paixões.

Achou uma grande tolice que existissem restaurantes abertos e que as pessoas almoçassem. Maldisse com a mesma intensidade as leis que preservam o patrimônio urbanístico e as permissões concedidas aos novos empreendimentos imobiliários. Desejou que as ruas não fossem tortas. Nem retas.

Distante, ouviu o barulho do bonde que subia a rua em sua direção.

Já estava, neste ponto, no Largo do Guimarães.

Já não se importava.

Julgou que seria belo se a vida retomasse parte de seu sentido pela obra de algo tão desprovido deste quanto os arcaicos bondes que ainda cruzam as ruas de seu bairro.

De costas para o bonde, olhos fechados, pôde identificar com precisão o momento de dar o passo para cima dos trilhos. Passo dado, sem volta, pôde ouvir os gritos e o inútil freio acionado pelo condutor do bonde.

Quando finalmente abriu seus olhos, teve tempo apenas de perceber nos trilhos fincados no asfalto o desvio tomado pelo bonde para evitar chocar-se com ele em alta velocidade.

Em seguida, levou o primeiro soco.

Os moradores de Santa Teresa amam o bonde, meio de transporte de grande parte dos que ali vivem. Os empregados da empresa que opera os bondes também amam o bonde. Dali sai o pão que alimenta suas famílias. Os que amam o bonde compartilham a crença de que acidentes envolvendo o bonde e seres humanos não são bons para a imagem do simpático meio de transporte. Igualmente, seres humanos, de um modo geral, não costumam nutrir grande apreço por aqueles que deliberadamente interrompem sua rotina diária.

Tão logo o bonde desviou de Pedro, parando alguns metros à frente, seu condutor e alguns passageiros iniciaram a surra que por pouco, não fosse a intervenção dos policiais que patrulham o Largo, não fez do frustrado suicida uma bem sucedida vítima de homicídio por espancamento.

Convalescente ainda, recuperando-se no Souza Aguiar, recebeu Mariazinha que, enquanto afagava-lhe o cabelo, repetia condoída:

- Tudo culpa minha... Tudo culpa minha...

E ele:

- Acontece, jujubinha... Acontece...