Seminovos e usados

EM TENTATIVA

Pessoal

Mora no Rio de Janeiro. Carioca adotivo, faz umas coisas por aí e já quis escrever com alguma disciplina, razão de ser desse blogue.

A Foto

No cabeçalho do blogue são três britânicos vasculhando os destroços da biblioteca de Holland House, em Londres, outubro de 1940, após bombardeio alemão. Nove em cada nove espíritos elevados concordam que entre uma bomba e outra há sempre espaço para uma flûte de champagne, um passeio de olhos em prateleiras repletas de livros e uma boa leitura. Sem dúvida.

Escreva-me

dpedra @gmail.com

Últimos Posts

Leio

Powered by Blogger

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

.

segunda-feira, outubro 18, 2004

CHÁ DA TARDE

- Que bom que você veio.
- Não deixaria de vir.

O salão da antiga confeitaria era o ambiente perfeito para o encontro tantas vezes adiado. Os candelabros pendendo do teto, as paredes tomadas de espelhos, os detalhes da louça e das toalhas conferindo distinção à decoração das mesas em contraste com a decadência dos atuais freqüentadores do lugar.

Sentada diante de Manuelzinho está a Morte, derradeira companhia para o chá da tarde, a conviva inevitável mesmo para alguém que, como ele, fez da vida um manancial de prazeres que pretendeu inesgotável.

Enquanto serve-se de chá preto sem açúcar e observa a Morte despejar gotas de adoçante em sua xícara de chá verde, Manuelzinho conclui que a vida lhe foi honesta, até mesmo boa, permitindo-lhe ter conhecido o amor de algumas mulheres, constituir família e ver os filhos e netos darem seqüência à perpetuação de seus genes. Trabalhou, ganhou e gastou dinheiro. Teve sonhos, conquistas e frustrações.

Há algum tempo, vem sentindo o cansaço que sentem os que se tornam viúvos, vêem os filhos indo morar em outras cidades, enterram os amigos e já não se divertem tanto quanto antes gastando os recursos que ainda têm poupados. Em suas recentes reflexões recebe, com freqüência, inspiração de seu velho corpo, deteriorado, que o lembra da fragilidade da carne, o barro de que somos feitos.

Entre goles de chá e nacos de bolinhos, Manuelzinho e a Morte falam de assuntos corriqueiros. Ele se queixa do tédio e das dores que se espalham pelo corpo. Ela reclama da sobrecarga de trabalho nos dias de hoje tão violentos. Não há constrangimento entre eles e Manuelzinho credita as pausas compridas que permeiam a conversa entre os dois, a uma mistura de solenidade devida à ocasião mais a natural falta de assunto entre seres de natureza tão distinta. Findo o chá, decide tomar a iniciativa:
- Creio que é chegada a hora. Devo pedir a conta?
- Claro. Se você for do tipo que não gosta de deixar dívidas.

Manuelzinho vê a Morte sorrir, achando graça do próprio senso de humor. Chama a garçonete e pede-lhe que traga a conta. Repara que a garçonete não aparenta estranheza alguma por encontrar a Morte dividindo a mesa com ele, ao contrário, sente que a moça, de beleza exótica, enxerga-o com olhos calorosos e compreensivos.

Novamente a sós, os dois aguardam em silêncio pela chegada da nota contendo a despesa. A garçonete traz o cartão de couro sintético que protege a conta e o põe sobre a mesa, permitindo uma última tirada espirituosa da, dita, indesejada:
- A dama espera que o cavalheiro pague as despesas do primeiro encontro, mesmo que este seja também o último encontro.

Automaticamente, Manuelzinho apanha o cartão de couro e avalia seu conteúdo, sabendo que aqueles são os últimos gestos que fará nessa vida. Faz menção de apanhar a carteira e, súbito, decide que faz jus a um último pedido:
- Posso ir ao banheiro?
- Eu espero você aqui.

Resignado, levanta-se da mesa e caminha na direção do banheiro. Contorna o balcão de doces da confeitaria e, aproveitando que a Morte está distraída tentando identificar a origem dos talheres de estanho, muda de rumo e ganha a rua.

Caminhando entre estranhos, sentindo o cheiro de gordura dos restaurantes, suor humano e lixo que domina as ruas estreitas do centro da cidade, Manuelzinho aperta com força o guardanapo em que a garçonete escrevera o número de telefone. A conta, sobre a mesa, deixou para a Morte pagar.