CHÁ DA TARDE
- Que bom que você veio.
- Não deixaria de vir.
O salão da antiga confeitaria era o ambiente perfeito para o encontro tantas vezes adiado. Os candelabros pendendo do teto, as paredes tomadas de espelhos, os detalhes da louça e das toalhas conferindo distinção à decoração das mesas em contraste com a decadência dos atuais freqüentadores do lugar.
Sentada diante de Manuelzinho está a Morte, derradeira companhia para o chá da tarde, a conviva inevitável mesmo para alguém que, como ele, fez da vida um manancial de prazeres que pretendeu inesgotável.
Enquanto serve-se de chá preto sem açúcar e observa a Morte despejar gotas de adoçante em sua xícara de chá verde, Manuelzinho conclui que a vida lhe foi honesta, até mesmo boa, permitindo-lhe ter conhecido o amor de algumas mulheres, constituir família e ver os filhos e netos darem seqüência à perpetuação de seus genes. Trabalhou, ganhou e gastou dinheiro. Teve sonhos, conquistas e frustrações.
Há algum tempo, vem sentindo o cansaço que sentem os que se tornam viúvos, vêem os filhos indo morar em outras cidades, enterram os amigos e já não se divertem tanto quanto antes gastando os recursos que ainda têm poupados. Em suas recentes reflexões recebe, com freqüência, inspiração de seu velho corpo, deteriorado, que o lembra da fragilidade da carne, o barro de que somos feitos.
Entre goles de chá e nacos de bolinhos, Manuelzinho e a Morte falam de assuntos corriqueiros. Ele se queixa do tédio e das dores que se espalham pelo corpo. Ela reclama da sobrecarga de trabalho nos dias de hoje tão violentos. Não há constrangimento entre eles e Manuelzinho credita as pausas compridas que permeiam a conversa entre os dois, a uma mistura de solenidade devida à ocasião mais a natural falta de assunto entre seres de natureza tão distinta. Findo o chá, decide tomar a iniciativa:
- Creio que é chegada a hora. Devo pedir a conta?
- Claro. Se você for do tipo que não gosta de deixar dívidas.
Manuelzinho vê a Morte sorrir, achando graça do próprio senso de humor. Chama a garçonete e pede-lhe que traga a conta. Repara que a garçonete não aparenta estranheza alguma por encontrar a Morte dividindo a mesa com ele, ao contrário, sente que a moça, de beleza exótica, enxerga-o com olhos calorosos e compreensivos.
Novamente a sós, os dois aguardam em silêncio pela chegada da nota contendo a despesa. A garçonete traz o cartão de couro sintético que protege a conta e o põe sobre a mesa, permitindo uma última tirada espirituosa da, dita, indesejada:
- A dama espera que o cavalheiro pague as despesas do primeiro encontro, mesmo que este seja também o último encontro.
Automaticamente, Manuelzinho apanha o cartão de couro e avalia seu conteúdo, sabendo que aqueles são os últimos gestos que fará nessa vida. Faz menção de apanhar a carteira e, súbito, decide que faz jus a um último pedido:
- Posso ir ao banheiro?
- Eu espero você aqui.
Resignado, levanta-se da mesa e caminha na direção do banheiro. Contorna o balcão de doces da confeitaria e, aproveitando que a Morte está distraída tentando identificar a origem dos talheres de estanho, muda de rumo e ganha a rua.
Caminhando entre estranhos, sentindo o cheiro de gordura dos restaurantes, suor humano e lixo que domina as ruas estreitas do centro da cidade, Manuelzinho aperta com força o guardanapo em que a garçonete escrevera o número de telefone. A conta, sobre a mesa, deixou para a Morte pagar.
- Não deixaria de vir.
O salão da antiga confeitaria era o ambiente perfeito para o encontro tantas vezes adiado. Os candelabros pendendo do teto, as paredes tomadas de espelhos, os detalhes da louça e das toalhas conferindo distinção à decoração das mesas em contraste com a decadência dos atuais freqüentadores do lugar.
Sentada diante de Manuelzinho está a Morte, derradeira companhia para o chá da tarde, a conviva inevitável mesmo para alguém que, como ele, fez da vida um manancial de prazeres que pretendeu inesgotável.
Enquanto serve-se de chá preto sem açúcar e observa a Morte despejar gotas de adoçante em sua xícara de chá verde, Manuelzinho conclui que a vida lhe foi honesta, até mesmo boa, permitindo-lhe ter conhecido o amor de algumas mulheres, constituir família e ver os filhos e netos darem seqüência à perpetuação de seus genes. Trabalhou, ganhou e gastou dinheiro. Teve sonhos, conquistas e frustrações.
Há algum tempo, vem sentindo o cansaço que sentem os que se tornam viúvos, vêem os filhos indo morar em outras cidades, enterram os amigos e já não se divertem tanto quanto antes gastando os recursos que ainda têm poupados. Em suas recentes reflexões recebe, com freqüência, inspiração de seu velho corpo, deteriorado, que o lembra da fragilidade da carne, o barro de que somos feitos.
Entre goles de chá e nacos de bolinhos, Manuelzinho e a Morte falam de assuntos corriqueiros. Ele se queixa do tédio e das dores que se espalham pelo corpo. Ela reclama da sobrecarga de trabalho nos dias de hoje tão violentos. Não há constrangimento entre eles e Manuelzinho credita as pausas compridas que permeiam a conversa entre os dois, a uma mistura de solenidade devida à ocasião mais a natural falta de assunto entre seres de natureza tão distinta. Findo o chá, decide tomar a iniciativa:
- Creio que é chegada a hora. Devo pedir a conta?
- Claro. Se você for do tipo que não gosta de deixar dívidas.
Manuelzinho vê a Morte sorrir, achando graça do próprio senso de humor. Chama a garçonete e pede-lhe que traga a conta. Repara que a garçonete não aparenta estranheza alguma por encontrar a Morte dividindo a mesa com ele, ao contrário, sente que a moça, de beleza exótica, enxerga-o com olhos calorosos e compreensivos.
Novamente a sós, os dois aguardam em silêncio pela chegada da nota contendo a despesa. A garçonete traz o cartão de couro sintético que protege a conta e o põe sobre a mesa, permitindo uma última tirada espirituosa da, dita, indesejada:
- A dama espera que o cavalheiro pague as despesas do primeiro encontro, mesmo que este seja também o último encontro.
Automaticamente, Manuelzinho apanha o cartão de couro e avalia seu conteúdo, sabendo que aqueles são os últimos gestos que fará nessa vida. Faz menção de apanhar a carteira e, súbito, decide que faz jus a um último pedido:
- Posso ir ao banheiro?
- Eu espero você aqui.
Resignado, levanta-se da mesa e caminha na direção do banheiro. Contorna o balcão de doces da confeitaria e, aproveitando que a Morte está distraída tentando identificar a origem dos talheres de estanho, muda de rumo e ganha a rua.
Caminhando entre estranhos, sentindo o cheiro de gordura dos restaurantes, suor humano e lixo que domina as ruas estreitas do centro da cidade, Manuelzinho aperta com força o guardanapo em que a garçonete escrevera o número de telefone. A conta, sobre a mesa, deixou para a Morte pagar.