Seminovos e usados

EM TENTATIVA

Pessoal

Mora no Rio de Janeiro. Carioca adotivo, faz umas coisas por aí e já quis escrever com alguma disciplina, razão de ser desse blogue.

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No cabeçalho do blogue são três britânicos vasculhando os destroços da biblioteca de Holland House, em Londres, outubro de 1940, após bombardeio alemão. Nove em cada nove espíritos elevados concordam que entre uma bomba e outra há sempre espaço para uma flûte de champagne, um passeio de olhos em prateleiras repletas de livros e uma boa leitura. Sem dúvida.

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terça-feira, outubro 19, 2004

LUTO

- Posso te pedir uma coisa?
- Claro.
- Quando eu morrer, espera pelo menos três anos antes de se casar de novo?
- Morrer? Que papo é esse de morrer?
- Um dia eu vou morrer, você vai continuar vivo por aí e vai querer casar de novo. Por isso eu estou pedindo que você espere pelo menos três anos antes de fazer o que eu sei você vai acabar fazendo.
- Você não acha que falta tempo pra gente se preocupar com essa estória de morte? Nossos filhos mal acabaram o primário, nós não terminamos de pagar nosso apartamento e minha calvície está apenas começando.
- Por isso mesmo que eu digo! Eu posso morrer e você vai continuar por aí, viúvo, com imóvel próprio e cabelo para pentear. Não vão faltar pretendentes! Além do quê, homem nunca fica sozinho, acaba sempre casando de novo, parece que não sobrevive se fica sozinho.
- Meu bem, você sabe que é única mulher em quem eu consigo pensar. Como é que você, de uma hora para outra, vem me obrigando a decidir um prazo para arranjar outra mulher caso você morra? E minha dor de viúvo? Você não respeita?
- Haroldinho, Haroldinho... Não me vem com papo mole. Você sabe muito bem que homem não fica de luto. Já no velório da mulher aproveita para abraçar as amigas dela, os ex-casos que se dão ao desplante de checar se a rival vai ser mesmo enterrada, e quem mais aparecer dando sopa. Quando a gente vai ver, já está lá o recém-viúvo aceitando condolências, dando dois beijinhos e apertando com força quando é abraçado.
- Ai, ai... De novo aquela estória do enterro de sua tia Vitória? Você não consegue mesmo esquecer o que seu tio Artur fez?
- E nem quero. Meu finado tio me ensinou muita coisa no enterro de titia Vitória. Você não estava lá e não viu a obscenidade que foi o velório e o enterro. O safado aumentava o choro e saía agarrando o primeiro rabo-se-saias que via pela frente. Um horror!
- Mas e seu pai? Seu pai enviuvou e, enquanto esteve vivo, não se casou de novo. Além disso, eu fui ao enterro de sua mãe e ele mal apertou a mão dos que compareceram. Das poucas mulheres que estavam lá, então, ele nem chegou perto.
- Porque eu e minhas irmãs não deixamos. Fizemos questão de avisar do enterro apenas para os amigos de papai e avisávamos às mulheres, que sabe-se lá como apareceram, que papai desenvolvera fobia de contato social e que elas não deviam encostar nele por causa disso. Se não fosse nossa intervenção, o velório de mamãe teria sido a mesma pouca vergonha.
- Mas seu pai não se casou de novo. Como você explica isso?
- Nem que ele quisesse. Deixamos bem claro que, se ele precisasse, que marcasse encontros escusos ou visitasse lupanares, mas que casar de novo, nem pensar!
- E vocês vigiavam o pai de vocês?
- Vigiávamos. Foi preciso. Eu e minhas irmãs nos revezávamos na campana e funcionou bem durante o ano e três meses que papai viveu além da mamãe. Bem que eu tinha ouvido dizer que o homem quando fica viúvo com mais idade não vive muito tempo sem a mulher.
- Meu amor, escuta bem pois espero dizer isso uma vez apenas, eu nunca ouvi tanto disparate junto vindo da mesma pessoa. E mais, desse jeito você me ofende, dizendo que eu vou fazer do velório da minha mulher um lugar de pouca vergonha. Eu não mereço ouvir isso. Simplesmente não mereço.
- Mas vai fazer o que eu pedi?
- E também não devia ter que ouvir esse tipo de pedido de sua parte. Sempre fui um marido exemplar, elogiado inclusive por suas amigas e irmãs.
- Eu sei que você é um bom marido, mas eu também sou uma boa esposa. Recolho suas coisas que você deixa espalhadas pela casa, guardo suas roupas, separo suas meias nas gavetas pela cor de cada uma, trago seu jornal na cama... E eu preciso ouvir sua resposta. Preciso que você atenda meu pedido. Responde. Faz isso por mim?
- Tá, tá... Eu faço o que você pediu. Insistindo assim...
- Mesmo?
- Com uma condição. Porque, afinal, eu também tenho direitos nessa casa.
- Que condição, Haroldinho?
- Diminui pra um ano e meio? Três anos sem jornal na cama, separando minhas próprias meias... Não sei se agüento... É tempo demais...