Seminovos e usados

EM TENTATIVA

Pessoal

Mora no Rio de Janeiro. Carioca adotivo, faz umas coisas por aí e já quis escrever com alguma disciplina, razão de ser desse blogue.

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No cabeçalho do blogue são três britânicos vasculhando os destroços da biblioteca de Holland House, em Londres, outubro de 1940, após bombardeio alemão. Nove em cada nove espíritos elevados concordam que entre uma bomba e outra há sempre espaço para uma flûte de champagne, um passeio de olhos em prateleiras repletas de livros e uma boa leitura. Sem dúvida.

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terça-feira, novembro 02, 2004

NOIVOS

O casal de noivos, sentado à mesa de jantar, no centro da sala do apartamento, de mãos dadas, discute veleidades típicas dos casais apaixonados.

- Você não liga mais para mim. Parece que não gosta mais de mim – Maria Clara reclama num sussurro que escapa pelo bico que seus lábios formam.

- Não é isso – ele responde no ritmo pausado e cuidadoso que lhe é característico – Tem sido difícil telefonar, coração. Esse trabalho está acabando comigo, tudo termina nas minhas costas. Às vezes parece que só eu trabalho na repartição.

- Larga esse emprego, então. Você volta para o Rio de Janeiro e vem morar comigo. Esse apartamento é meu, nós já temos onde morar, e logo você arranja outro emprego. Nem precisa pagar a mesma coisa, eu não sou de muitos gastos e ainda tem o que eu ganho com as venda dos bordados. Desde que você esteja perto, tudo se resolve – ela arriscou os mesmos argumentos já conhecidos dele.

- Meu bem - a voz cheia de candura – um emprego público desses a gente não joga assim pela janela. Está certo que, por causa dele, preciso morar em outra cidade, nos vemos só aos finais de semana, a saudade aperta, eu sei de tudo isso e sofro também. Não pense que é fácil para mim ficar longe de você. Todos os dias de manhã, na hora de levantar, eu me esforço para pôr na cabeça que é passageiro, que muito em breve vou poder ser transferido e que vamos realizar nosso sonho de morar juntos. Um pouco de paciência e logo essa fase sofrida fica para trás.

- Eu sei, você tem razão, mas eu me sinto só sem você por perto – ela capitulou, como das demais vezes.

O que Maria Clara sente pelo noivo beira a adoração. Quando se conheceram, ela duvidava da existência de homens sérios, que ainda acreditassem nos mesmos valores da rígida educação por ela recebida em casa. Dagoberto era trabalhador e procurava melhorar de vida, o que ela pôde comprovar acompanhando a trajetória dele de funcionário de uma universidade privada até a rápida aprovação no concurso que o levou a residir noutra cidade. Além disso, ele era respeitador e só aceitou passar as noites em seu apartamento depois que ficaram noivos e somente para evitar gastos desnecessários de estada na cidade. Suas qualidades, somadas ao cuidado que sempre procurava dispensar à noiva, presente em detalhes como lhe servir a xícara de café, abrir portas e puxar cadeiras, cobrir-lhe o corpo à noite antes de ajeitar-se a si próprio na cama e ouvir com paciência as queixas nascidas na ansiedade dela por se ver logo casada, faziam dele o chamado bom partido, ao menos na forma de Maria Clara conceber bons partidos.

Sentaram-se no sofá para uma última troca de carinhos tão logo chegou ao fim mais aquela infrutífera tentativa de convencê-lo a abandonar as recentes conquistas profissionais em nome de uma vida a dois compartilhada numa mesma cidade, espécie de ritual a que ela, sem forças para dominar os anseios que seu relógio biológico impunha, submetia o casal ante a proximidade, fim de tarde de domingo, da hora de se despedirem por mais uma semana.

- Você é minha noiva e vamos ficar juntos para sempre – ele gostava de repetir, na expectativa de que ela acreditasse e, com isso, se acalmasse.

- Mais uma semana... – a resposta dela, decepcionada e invariável.

Maria Clara não conseguia, por mais que o desejasse, agir sob inspiração do espírito cartesiano do noivo. Compreendia-lhe a personalidade, criança que cedo tornou-se órfã e acabou criada pelos hábitos rudes de uma tia no Mato Grosso, sua única parente ainda viva. Embora evitassem ter o passado como tema nas conversas do casal, ela sabia que as marcas desse tempo áspero haviam forjado em seu noivo um inegável dom para o controle das emoções, ao contrário dela que era inteiramente tomada por qualquer sentimento que por ventura dela se apoderasse. Se estivesse triste, por exemplo, seria impossível a quem estivesse próximo ignorar que se encontrava diante de uma mulher consumida pela mais genuína e devastadora tristeza. Eram diferentes, nada podia fazer, exceto suportar mais aquela separação agarrada ao tênue fio da transitoriedade das provações que o noivo esforçava-se para lhe oferecer.

Na portaria principal do edifício eles trocam o último beijo, sob os olhares discretos do porteiro e a vigilância do motorista de praça que aguarda Dagoberto. Maria Clara gostaria de impedir a queda das lágrimas que lhe inundam os olhos, mas não aprendeu ainda como fazê-lo. De pé junto ao portão de seu prédio, acena para o táxi que leva embora seu noivo. Aos poucos, o carro vai se tornando um ponto minúsculo até desaparecer diluído no horizonte. Maria Clara já não enxuga as lágrimas que lhe escorrem face abaixo. Aos domingos, o sal das lágrimas que deslizam até sua boca é o melhor antídoto para o doce sonho da vida ao lado de Dagoberto que, mais uma vez, não se realizará.

- Base Aérea do Galeão – ele pede ao motorista.

O carro sai cruzando os diversos bairros que o separam da Ilha do Governador. Há tempo de sobra para rememorar o final de semana ao lado da noiva, tanto os momentos agradáveis como sua insistência naquela insensata mudança para o Rio. Gostava muito da noiva, de uma maneira suave, como se gosta de um passarinho ainda filhote, e adoraria que houvesse uma forma de causar-lhe menos sofrimento. Maria Clara se entregava com fervor aos sentimentos que os uniam e, como entrega e cobrança caminham lado a lado no coração humano, não evitava cobrar dele um tipo de perfeição que não podia oferecer. Se ao menos ela pudesse se conformar, talvez pudesse ser diferente. Talvez fosse mais simples.

Perdido em reflexões, precisou ser avisado pelo motorista que o percurso chegara ao fim.

- Ali, na Vila Militar – Dagoberto indica com o dedo o local ao taxista – casa 27, por favor.

Ele paga a corrida e desce rapidamente do carro que parte em seguida. Sozinho, defronte ao portão, os poucos passos que o separam da porta de entrada da casa transformam-se numa distância imensa. Dagoberto passa pelo portão de ferro e, já próximo da porta, um menino surge correndo, agarrando-o pelas pernas.

- Papai chegou! Papai chegou! – grita porta adentro, sem desgrudar do pai.

Dagoberto sorri. Abraça o filho erguendo-o do chão e, discretamente, muda a aliança que ostenta no dedo anular da mão direita para o mesmo dedo na mão esquerda. Sua mulher surge vestida especialmente para recebê-lo, portando no rosto maquiado a expressão de alívio pelo retorno do marido.

- O jantar está esperando na mesa. Só faltava você chegar – ela convida enquanto abraça o marido, olhos fechados, cabeça apoiada em seu peito. Em troca, recebe um beijo no alto da cabeça.

Sentados à mesa, em meio a colheradas de sopa, reclamações do menino para não comer todo o conteúdo do prato e ao silêncio que traduz as queixas da esposa, Dagoberto repete algumas vezes, no tom manso que lhe é peculiar, o habitual descontentamento com a situação.

- Eu não vou agüentar por muito tempo essa escala de vôo. Se eu adivinhasse antes o desgaste, não tinha aceitado. Todo fim-de-semana longe. Não dá mais. Um dia eu acabo com isso, meu bem, e vai ser para breve. Saio dessa escala e nossa vida volta ao normal, você vai ver – ele diz, dando a senha para o início da semana.