Seminovos e usados

EM TENTATIVA

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Mora no Rio de Janeiro. Carioca adotivo, faz umas coisas por aí e já quis escrever com alguma disciplina, razão de ser desse blogue.

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No cabeçalho do blogue são três britânicos vasculhando os destroços da biblioteca de Holland House, em Londres, outubro de 1940, após bombardeio alemão. Nove em cada nove espíritos elevados concordam que entre uma bomba e outra há sempre espaço para uma flûte de champagne, um passeio de olhos em prateleiras repletas de livros e uma boa leitura. Sem dúvida.

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terça-feira, outubro 28, 2003

ESCADA


Parou diante da escada quando se viu tomado pela dúvida.

Não que desconfiasse das garantias de segurança que a escada oferecia. Os próprios donos da casa foram muito solícitos explicando para ele que não só a escada não apresentava maiores riscos à  sua saúde, como também houvera sido aquela mesma escada a que ele utilizara para alcançar o deck da piscina quando de sua chegada naquela pequena reunião de amigos.

De fato a escada parecera firme quando desceu por ela, o que criava dificuldades para que afirmasse recear uma possível sua instabilidade, já que até mesmo o terreno seguia firme, amparado na abençoada regra da natureza que proibira terremotos no Rio de Janeiro.

Como não fosse vocacionado para mentiras, mentia pessimamente, sabia que não optaria por esse tipo de explicação.

O que o levou a outro problema: não sabia explicar o porquê da súbita parada diante daqueles degraus.

Cogitou se não seria a causa de sua paralisia uma espécie de autopunição pelas pequenas vilanias que cometera ao longo da vida, seus pecadilhos que visavam sempre à preservação do que o circundava, antí­doto contra o pânico que experimentava quando diante de situações potenciais de mudança.

Descartou a hipótese de estar sendo punido ao lembrar-se que ato nenhum seu conseguira gerar felicidade em quantidade suficiente para justificar um castigo daquela monta. Seria desproporcional demais. Não seria justo.

A dúvida o mortificava quando, ao ouvir um comentário sarcástico de um dos convivas, lembrou-se da ex-esposa que o deixara fazia cinco meses naquele domingo.

Imaginou que ela certamente teria adorado presenciar aquela cena, a qual serviria depois para aumentar o rol de estórias jocosas a seu respeito do qual ela fazia uso sempre que precisava entreter os conhecidos que tinham em comum.

Viu-a rindo de forma histriônica e fazendo rir os demais presentes ao afirmar que o marido decerto sofreria de um medo de altura atí­pico, um que não fosse apenas vertical mas também horizontal, pois se jamais fora capaz de subir em coisa alguma na vida, tampouco fizera questão de progredir em linha reta, preferindo sempre retornar pelo caminho por onde tivesse ensaiado algum tipo de avanço.

No pôde deixar de pensar que apenas ressaltar a imagem, que dele tinha a esposa, de fracassado incorrigível não permitiria retratar com correção o que realmente ela pensava a seu respeito. Restariam subdimensionados o desprezo e a incompreensão. Sentimentos contidos no que a ele se referisse e invariavelmente exercitados com insolente prazer.

A lembrança da mulher, ex-mulher, fê-lo sentir a mesma revolta de outros tempos. Como ela podia dizer aquelas coisas terrí­veis sobre ele? Por que humilhá-lo tanto e daquela forma? Será que ela não via seus dentes cerrados? Sua expressão de desaprovação?

Um dia ele haveria de revidar, de falar algo, de fazer alguma coisa. Ela então saberia quem ele era e o que ele pensava sobre as coisas que ela fazia há tanto tempo. Um dia ele subiria alto e não recuaria diante de possibilidades positivas. Nesse dia não retornaria a seu ponto de partida, não seria preciso. Os resultados de seus atos ignorariam as previsões e as probabilidades. Ele seria o novo, a novidade, uma celebração de reveillon humano.

Balbuciando palavras que excitavam a imaginação e faziam crescer o espanto dos demais convidados, tomado por pensamentos indecifráveis, deu meia volta diante da escada, ignorou o previsível caminho de volta, saltou a cerca no fim do quintal, entrou no quintal do vizinho, saltou seu muro e ganhou a rua.

Não sem luxar, antes, o pulso direito na queda.