Seminovos e usados

EM TENTATIVA

Pessoal

Mora no Rio de Janeiro. Carioca adotivo, faz umas coisas por aí e já quis escrever com alguma disciplina, razão de ser desse blogue.

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No cabeçalho do blogue são três britânicos vasculhando os destroços da biblioteca de Holland House, em Londres, outubro de 1940, após bombardeio alemão. Nove em cada nove espíritos elevados concordam que entre uma bomba e outra há sempre espaço para uma flûte de champagne, um passeio de olhos em prateleiras repletas de livros e uma boa leitura. Sem dúvida.

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quarta-feira, setembro 29, 2004

CUSCUZ

- Safada!
- O que foi?
- Safadeza!
- Do que você está falando, mulher?
- Como eu tenho raiva desse tipo de gente!
- Pronto. Já vi tudo. Lá vamos nós de novo.
- Você não viu foi nada! Mas que raiva!
- De quem você está com raiva dessa vez?
- Daquela baiana safada de quem eu tive a infeliz idéia de comprar cuscuz de coco.
- Que que tem o seu cuscuz de coco?
- Não tem.
- Não tem cuscuz?
- Não tem coco. Aquela maldita baiana sem-vergonha, mesmo eu tendo insistido, frisado, sido clara e específica sobre o que eu queria, que era bastante coco sobre meu cuscuz, não se dignou a colocar sequer uma mísera raspa de coco sobre o pobre.
- Coco? Tudo isso por causa de coco? Você já foi menos exagerada...
- Não tem nada de exagero quando uma pessoa compra cuscuz de coco e acaba levando para casa cuscuz de goma.
- Mas isso lá é motivo para desqualificar alguém? Cuscuz disso, cuscuz daquilo...É tudo cuscuz.
- Claro que tem diferença. A cara-de-pau da baiana que serve o cuscuz faz a diferença. Sua mãe é testemunha de que eu disse com todas as letras para aquela lavadora de escada do senhor do bonfim que queria meu cuscuz com bastante coco.
- Calma aí. E você não viu ela preparar o raio do cuscuz?
- Enquanto eu conversava com sua mãe, aquela arremedo de Dadá fez questão de aprontar tudo e enfiar na sacola o bendito cuscuz antes que eu pudesse fiscalizar o que ela fazia do meu pedido. Como eu detesto essa gente de índole safada. Sabe feirante que usa quilo de novecentos gramas e vendedor de suco que reaproveita copo descartável que o cliente jogou no lixo? Então. É desse tipo essa baiana.
- Lá vem você exagerando. Deve ter sido engano dela, coitada...
- Não me venha você agora defendendo essa sem-vergonha. Só me falta essa agora.
- Só estou dizendo que...
- Já disse que não quero você defendendo essa desqualificada. Pensa que eu não vi você outro dia cheio de intimidade com ela? Mas comigo não tem dessas coisas. Não vá pensando que isso não vai ficar assim. Essa sua amiguinha baiana me paga.
- Tecnicamente não se pode dizer que ele é minha amiga. Nós apenas conversamos um pouco outro dia quando fui comer acarajé. Só isso.
- Como você é sem-vergonha. Não ouse ficar do lado daquela mulherzinha.
- Só acho que você está exagerando nessa estória de coco. Coco nem é tão importante assim.
- Eu gosto de coco no meu cuscuz e quem sabe se é ou não é importante ter coco no meu cuscuz sou eu mesma. Não venha controlar meus gostos.
- Hummm... Deixa eu ver se faço você ver diferente isso de coco no cuscuz..
- Não adianta tentar me acalmar.
- Já sei. Pensa no Alceu que vende água de coco pra gente lá na Lagoa quando vamos caminhar. Dia sim, dia sim, ele está lá no seu ponto de venda de coco, gelando coco, cortando coco, servindo coco. Aposto que se eu perguntar ele vai dizer que não é tão importante assim ter coco sobre o cuscuz.
- O Alceu não vale. O café da manhã do Alceu é cachaça com lingüiça. Digamos que isso o desqualifica para decidir entre qualidades de cuscuz.
- Tudo bem. Deixa o Alceu pra lá. Imagina o personagem do Tom Hanks em “O Náufrago”. Lembra?
- Lembro.
- Tenho certeza que se perguntássemos para ele como ele gostaria de ter servido seu cuscuz ele pediria sem coco algum. Não acha?
- É... Pode ser...
- Então. Você não gosta do Tom Hanks?
- Gosto.
- O que ele pensa sobre coco no cuscuz significa alguma coisa pra você, não significa?
- Digamos que o Tom Hanks é mais qualificado que o Alceu vendedor de cocos.
- Agora que o Tom Hanks disse que prefere o dele sem coco algum, não parece menos importante se tinha pouco ou nenhum coco sobre o cuscuz que você comprou?
- É... Tudo bem, tudo bem. Você e o Tom Hanks podem estar certos.
- Eu sabia que ainda havia resquícios de razão em você, meu amor que eu mais amo no mundo todo.
- E eu adoro quando você me convence...
- Posso ser dispensada da sessão de beijos?
- Oi, mamãe.
- Guardem os beijos para depois que eu degustar os quitutes que comprei. Onde estão minhas cocadas?
- Na sacola. Do lado do cuscuz sem coco. Esse que parece que está de cabeça para baixo.
- Sem coco? Como sem coco, se a primeira coisa que você fez foi pedir seu cuscuz com bastante coco?
- E ainda assim a baiana amiga de seu filho não cobriu meu cuscuz com uma raspinha sequer de coco...
- Distração dela, decerto. Melhor para você, meu anjo. Coco tem muita gordura que não faria bem para sua pele oleosa. E essas cocadas que não acho...
- Tinham que estar na sacola. Não estão aí?
- Não. Aqui não.
- Xiiii... Será que também não vieram as cocadas?
- Minhas cocadas? Mas que safada!

sexta-feira, setembro 24, 2004

GENÉTICA

- Você já reparou no jeito que o nosso filho ri?
- Como assim “no jeito que nosso filho ri”?
- É. Ele ri do jeito que ria um amigo meu da época de colégio, de olho fechado.
- “Olho fechado”?
- Isso. Apertando os olhos toda vez que ri.
- Mas o que tem demais nisso? Cada pessoa ri do jeito que quer, ora bolas.
- Nada disso. O jeito que a pessoa ri sempre gera conseqüências para ela. Esse meu amigo, por exemplo, até hoje é conhecido como o filho bastardo do japonês gozado. Não quero isso para o meu filho.
- Não tem nada desse papo de filho de japonês. Esse jeito de rir ele herdou do avô. Papai é quem ria desse jeito.
- Estranho, não me lembro de seu pai rindo.
- Mas era desse jeito que ele ria.
- Você não disse outro dia que seu pai não costumava rir por causa de uns problemas quando ele era criança. Que a mãe dele tinha muitos filhos, tinha que cuidar da vida, não podia ser amorosa com todos os quinze, e isto, e aquilo?
- Disse. É o que dizia mamãe sempre que parecia que meu pai tinha feito uma opção monástica pela cara fechada.
- E você não costuma dizer que seu pai tinha um grande senso de humor?
- Digo e repito. Não ser dado a risos não impedia ele de ser muito bem humorado. E daí?
- Daí que se o humor leva ao riso, seu pai deveria ter motivos para rir, não deveria?
- Visto desse jeito, sim, deveria. E daí?
- Daí que essa estória da sua mãe de que seu pai não ria porque não tinha recebido atenção da mãe quando criança não é o que explica a sisudez de seu pai.
- Do que você está falando?
- Seu pai parou de rir por outra razão.
- E qual seria essa razão?
- Seu pai fez uma opção.
- Opção?
- Enxergar a rir.
- O quê?
- Enxergar a rir. Quando ele ria seus olhos fechavam, então ele optou por continuar enxergando a rir.
- Quando eu penso que já ouvi todas as bobagens que deveria ouvir em vida, você me vem com essa?
- E nosso filho um dia vai também ter que se decidir por um dos dois.
- Você é louco! Meu pai teve uma infância difícil, sem amor dos pais, começou a trabalhar cedo, depois estudou, só se casou quando já tinha juntado algum patrimônio, já mais velho. Do que você queria que ele risse?
- Olha, essa sua versão da estória é até boa para quando a gente tiver que ensinar para o menino o valor do trabalho, sua ética, “primeiro a obrigação depois a diversão”, “ganharás o pão com o suor do seu rosto” e tudo o mais. Mas um dia ele vai ter que saber a verdade.
- Que verdade? Do que você está falando?
- Que seu pai preferiu enxergar a rir. E que ele também vai precisar escolher um dia.
- Você quando pega idéia fixa fica insuportável.
- Ouve que é importante. Nesse dia ele pode optar por rir e daí é muito importante.
- Tá bem. O que de tão importante você ainda quer dizer?
- Que ele não dê carona.
- Carona? Não dê carona?
- Nunca.
- ?
- Pra quem conte piadas ao motorista enquanto este dirige. Vê o risco?
- Você é mesmo uma besta! Devia ter te interrompido lá no começo dessa conversa. Onde já se viu ficar agourando o próprio filho?
- Não é questão de agourar. É preocupação.
- Chega! Vou até sair de perto. Vem, meu filho, que seu pai hoje não é boa companhia pra gente. Um trabalhão para pôr um bebê no mundo e vem esse aí despejar essa besteirada em cima da gente. Isso, filhinho, beija a mamãe. Isso. Agora tira o sorrisinho do rosto. Isso. Fica sério. Que nem o vovô no retrato... Que é muito perigoso isso de deixar o bebê rindo e apertando o olho... Sério.