Seminovos e usados

EM TENTATIVA

Pessoal

Mora no Rio de Janeiro. Carioca adotivo, faz umas coisas por aí e já quis escrever com alguma disciplina, razão de ser desse blogue.

A Foto

No cabeçalho do blogue são três britânicos vasculhando os destroços da biblioteca de Holland House, em Londres, outubro de 1940, após bombardeio alemão. Nove em cada nove espíritos elevados concordam que entre uma bomba e outra há sempre espaço para uma flûte de champagne, um passeio de olhos em prateleiras repletas de livros e uma boa leitura. Sem dúvida.

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quarta-feira, outubro 27, 2004

NO ÔNIBUS

Um caminhão acelera e despeja o negrume da fumaça que sai do escapamento diretamente sobre seu rosto.

Junto com as demais pessoas que também aguardam no ponto de ônibus, Ariadne reclama indefesa diante da potência desregulada dos veículos que transitam pelas ruas. Sob o toldo de concreto, e em sua volta, estudantes, trabalhadores, donas-de-casa e desocupados vigiam, com maior ou menor paciência, o tráfego de veículos, procurando, em meio ao caos que se forma, a condução que irá transportá-los ao destino desejado.

Ao sinal feito, o coletivo pára e recebe parte dos que estão de pé na calçada. Ariadne enfrenta a fila que leva ao trocador, paga a passagem e confere o troco antes de girar a borboleta, apelido singelo da catraca que se presta a contar, e denunciar ao fiscal mais adiante, quantas pessoas foram transportadas.

Os assentos todos tomados, assim como o corredor em que se espremem os passageiros que viajam de pé, afastam-lhe qualquer esperança numa viagem livre de bolinações. Nenhum vestígio do cavalheirismo, em cujas regras às damas há sempre assentos reservados. No espaço cada vez mais exíguo, a cada parada do ônibus, corpos e mais corpos esforçam-se por dividir o mesmo lugar, no que parece ser um experimento para comprovar a falibilidade das leis da física newtoniana.

À medida que mais pessoas alojam-se no interior do veículo, Ariadne sente crescer o asco que lhe causa o roçar de pele, tecidos e cheiros a que sempre se sujeita ao longo da viagem. A certeza de saber impossível distinguir dentre aquelas pessoas quais aproveitam-se do desconforto da situação para encontrar prazer nas esfregadas lascivas em seu corpo faz insuportável cada instante ali dentro.

Ao passarem pela Central, boa parte dos que a comprimem desce. Protegida num dos assentos enfim liberados, ela aguarda a entrada de outros passageiros, os outros estranhos com quem dividirá seu trajeto. Torce apenas por menos provações na jornada que prossegue.

Malgrado seus pedidos, logo se senta a seu lado um senhor de meia idade, de aparência cansada e poucos cuidados com higiene pessoal. O odor acre que exala do homem leva Ariadne a aproximar seu nariz da janela aberta em busca do perfume das ruas da cidade. As ruas, por sua vez, nem sempre oferecem o oásis aromático pretendido por ela, que lamenta conseguir manter presa a respiração por tão pouco tempo.

Mais à frente, o homem desce e respira-se melhor dentro do ônibus. Um adolescente toma seu lugar ao lado de Ariadne. Está acompanhado de colegas igualmente jovens que mantêm, aos gritos, um diálogo marcado por termos de baixo calão e referências grosseiras às mulheres. Um deles porta um aparelho ligado em volume incompatível com o respeito ao próximo. Por mais que se esforce, a professora de piano Ariadne não consegue rotular de música os sons que saem do aparelho e lhe ocorre que, nos dias atuais, Deus provavelmente faria uso da audição daqueles sons como meio de pôr à prova a fé de Jó, ao invés das igualmente eficazes, porém datadas, chagas pelo corpo.

O grupo desce na Praia do Flamengo e por algum tempo ela acredita na possibilidade de paz ao seu redor. Falta pouco até Copacabana e há lugares de sobra dentro do ônibus. O alívio é interrompido por uma senhora gorda que decide ocupar a vaga ao lado de Ariadne, possivelmente por esta ser a única mulher no carro. Em sua frente, acaba de sentar-se um homem em cuja cabeça a calvície avança devido à psoríase que lhe arranca do couro cabeludo enormes placas de pele imprestável para a fixação de fios de cabelo.

Imprensada pela espaçosa mulher e os engulhos que lhe provoca a cabeça do passageiro sentado em sua frente, Ariadne busca novamente o lado de fora do ônibus. Ali encontra a bela paisagem que vai ficando para trás enquanto se aproxima o destino dela. Também ali vê passar pessoas entregues aos próprios afazeres, tão dedicadas às próprias vidas que certamente ignoram que naquele ônibus que segue na direção de Copacabana viaja Ariadne, ao encontro de seu amor.

No seu destino final, espera por ela Mário Júlio, por quem ela se apaixonou e motivo de suas cada vez mais freqüentes travessias da cidade. No seu ponto de chegada, os braços de Mário Júlio são motivo de sobra para iluminar-lhe o rosto banhado pelo vento que adentra pela janela aberta. Por causa dele não importavam o fim do cavalheirismo, a má educação dos jovens ou a higiene precária de certos homens. Por ele, renascera o romance em sua vida, e, em nome de seu amor, ela renascera outra.

Amar não era fácil, mas ela era forte e, em meio às agruras que enfrentava, prevalecia sempre a esperança no que as pequenas brechas abertas na concretude do dia-a-dia faziam crer possível. Entre suspiros, ela e o veículo avançam, almejam cumprir seus destinos. Pela janela que se abre para a vida pulsante do lado de fora, lugar onde seu amado a aguardava, o suspiro de Ariadne é o registro de sua crença em dias futuros melhores. Se Deus quisesse, ela nunca mais andaria de ônibus. Nunca mais.


terça-feira, outubro 19, 2004

LUTO

- Posso te pedir uma coisa?
- Claro.
- Quando eu morrer, espera pelo menos três anos antes de se casar de novo?
- Morrer? Que papo é esse de morrer?
- Um dia eu vou morrer, você vai continuar vivo por aí e vai querer casar de novo. Por isso eu estou pedindo que você espere pelo menos três anos antes de fazer o que eu sei você vai acabar fazendo.
- Você não acha que falta tempo pra gente se preocupar com essa estória de morte? Nossos filhos mal acabaram o primário, nós não terminamos de pagar nosso apartamento e minha calvície está apenas começando.
- Por isso mesmo que eu digo! Eu posso morrer e você vai continuar por aí, viúvo, com imóvel próprio e cabelo para pentear. Não vão faltar pretendentes! Além do quê, homem nunca fica sozinho, acaba sempre casando de novo, parece que não sobrevive se fica sozinho.
- Meu bem, você sabe que é única mulher em quem eu consigo pensar. Como é que você, de uma hora para outra, vem me obrigando a decidir um prazo para arranjar outra mulher caso você morra? E minha dor de viúvo? Você não respeita?
- Haroldinho, Haroldinho... Não me vem com papo mole. Você sabe muito bem que homem não fica de luto. Já no velório da mulher aproveita para abraçar as amigas dela, os ex-casos que se dão ao desplante de checar se a rival vai ser mesmo enterrada, e quem mais aparecer dando sopa. Quando a gente vai ver, já está lá o recém-viúvo aceitando condolências, dando dois beijinhos e apertando com força quando é abraçado.
- Ai, ai... De novo aquela estória do enterro de sua tia Vitória? Você não consegue mesmo esquecer o que seu tio Artur fez?
- E nem quero. Meu finado tio me ensinou muita coisa no enterro de titia Vitória. Você não estava lá e não viu a obscenidade que foi o velório e o enterro. O safado aumentava o choro e saía agarrando o primeiro rabo-se-saias que via pela frente. Um horror!
- Mas e seu pai? Seu pai enviuvou e, enquanto esteve vivo, não se casou de novo. Além disso, eu fui ao enterro de sua mãe e ele mal apertou a mão dos que compareceram. Das poucas mulheres que estavam lá, então, ele nem chegou perto.
- Porque eu e minhas irmãs não deixamos. Fizemos questão de avisar do enterro apenas para os amigos de papai e avisávamos às mulheres, que sabe-se lá como apareceram, que papai desenvolvera fobia de contato social e que elas não deviam encostar nele por causa disso. Se não fosse nossa intervenção, o velório de mamãe teria sido a mesma pouca vergonha.
- Mas seu pai não se casou de novo. Como você explica isso?
- Nem que ele quisesse. Deixamos bem claro que, se ele precisasse, que marcasse encontros escusos ou visitasse lupanares, mas que casar de novo, nem pensar!
- E vocês vigiavam o pai de vocês?
- Vigiávamos. Foi preciso. Eu e minhas irmãs nos revezávamos na campana e funcionou bem durante o ano e três meses que papai viveu além da mamãe. Bem que eu tinha ouvido dizer que o homem quando fica viúvo com mais idade não vive muito tempo sem a mulher.
- Meu amor, escuta bem pois espero dizer isso uma vez apenas, eu nunca ouvi tanto disparate junto vindo da mesma pessoa. E mais, desse jeito você me ofende, dizendo que eu vou fazer do velório da minha mulher um lugar de pouca vergonha. Eu não mereço ouvir isso. Simplesmente não mereço.
- Mas vai fazer o que eu pedi?
- E também não devia ter que ouvir esse tipo de pedido de sua parte. Sempre fui um marido exemplar, elogiado inclusive por suas amigas e irmãs.
- Eu sei que você é um bom marido, mas eu também sou uma boa esposa. Recolho suas coisas que você deixa espalhadas pela casa, guardo suas roupas, separo suas meias nas gavetas pela cor de cada uma, trago seu jornal na cama... E eu preciso ouvir sua resposta. Preciso que você atenda meu pedido. Responde. Faz isso por mim?
- Tá, tá... Eu faço o que você pediu. Insistindo assim...
- Mesmo?
- Com uma condição. Porque, afinal, eu também tenho direitos nessa casa.
- Que condição, Haroldinho?
- Diminui pra um ano e meio? Três anos sem jornal na cama, separando minhas próprias meias... Não sei se agüento... É tempo demais...


segunda-feira, outubro 18, 2004

CHÁ DA TARDE

- Que bom que você veio.
- Não deixaria de vir.

O salão da antiga confeitaria era o ambiente perfeito para o encontro tantas vezes adiado. Os candelabros pendendo do teto, as paredes tomadas de espelhos, os detalhes da louça e das toalhas conferindo distinção à decoração das mesas em contraste com a decadência dos atuais freqüentadores do lugar.

Sentada diante de Manuelzinho está a Morte, derradeira companhia para o chá da tarde, a conviva inevitável mesmo para alguém que, como ele, fez da vida um manancial de prazeres que pretendeu inesgotável.

Enquanto serve-se de chá preto sem açúcar e observa a Morte despejar gotas de adoçante em sua xícara de chá verde, Manuelzinho conclui que a vida lhe foi honesta, até mesmo boa, permitindo-lhe ter conhecido o amor de algumas mulheres, constituir família e ver os filhos e netos darem seqüência à perpetuação de seus genes. Trabalhou, ganhou e gastou dinheiro. Teve sonhos, conquistas e frustrações.

Há algum tempo, vem sentindo o cansaço que sentem os que se tornam viúvos, vêem os filhos indo morar em outras cidades, enterram os amigos e já não se divertem tanto quanto antes gastando os recursos que ainda têm poupados. Em suas recentes reflexões recebe, com freqüência, inspiração de seu velho corpo, deteriorado, que o lembra da fragilidade da carne, o barro de que somos feitos.

Entre goles de chá e nacos de bolinhos, Manuelzinho e a Morte falam de assuntos corriqueiros. Ele se queixa do tédio e das dores que se espalham pelo corpo. Ela reclama da sobrecarga de trabalho nos dias de hoje tão violentos. Não há constrangimento entre eles e Manuelzinho credita as pausas compridas que permeiam a conversa entre os dois, a uma mistura de solenidade devida à ocasião mais a natural falta de assunto entre seres de natureza tão distinta. Findo o chá, decide tomar a iniciativa:
- Creio que é chegada a hora. Devo pedir a conta?
- Claro. Se você for do tipo que não gosta de deixar dívidas.

Manuelzinho vê a Morte sorrir, achando graça do próprio senso de humor. Chama a garçonete e pede-lhe que traga a conta. Repara que a garçonete não aparenta estranheza alguma por encontrar a Morte dividindo a mesa com ele, ao contrário, sente que a moça, de beleza exótica, enxerga-o com olhos calorosos e compreensivos.

Novamente a sós, os dois aguardam em silêncio pela chegada da nota contendo a despesa. A garçonete traz o cartão de couro sintético que protege a conta e o põe sobre a mesa, permitindo uma última tirada espirituosa da, dita, indesejada:
- A dama espera que o cavalheiro pague as despesas do primeiro encontro, mesmo que este seja também o último encontro.

Automaticamente, Manuelzinho apanha o cartão de couro e avalia seu conteúdo, sabendo que aqueles são os últimos gestos que fará nessa vida. Faz menção de apanhar a carteira e, súbito, decide que faz jus a um último pedido:
- Posso ir ao banheiro?
- Eu espero você aqui.

Resignado, levanta-se da mesa e caminha na direção do banheiro. Contorna o balcão de doces da confeitaria e, aproveitando que a Morte está distraída tentando identificar a origem dos talheres de estanho, muda de rumo e ganha a rua.

Caminhando entre estranhos, sentindo o cheiro de gordura dos restaurantes, suor humano e lixo que domina as ruas estreitas do centro da cidade, Manuelzinho aperta com força o guardanapo em que a garçonete escrevera o número de telefone. A conta, sobre a mesa, deixou para a Morte pagar.



sábado, outubro 16, 2004

MENINO

Menino descia as escadas na rapidez que suas pernas de menino permitiam. Vencia os degraus com cuidado e num ritmo constante, concentrado no que fazia. Como se não quisesse perder a liberdade de não precisar de um adulto seguindo seus passos o tempo todo.

Quando, enfim, concluía sua descida, não economizava sorrisos de júbilo pela vitória conquistada. Ainda tinha idade, pois, para comemorar o término de cada tarefa que se propunha realizar, por mais pequenina e repetitiva que fosse. Não tinha ainda os três primeiros anos completos.

Vivia solto na casa de vários andares. De longe o olhar da mãe. Os espaços, a mobília, empregados. Todos na mesma casa que o menino, que desse modo passava os dias. Solto. Senhor do que o cercava.

Às vezes, aparecia alguém dizendo coisas para o menino:
- Vem cá, menino!
- Sai da terra, menino!
- Não puxa o fio, menino!

Se o menino se machucava, logo aparecia sua mãe. Que sorria. Beijava. Sorria bonito, a mãe.

O menino não tinha medo de ficar solto, porque quando a mãe sorria, ele sorria junto.

Medo ele sentia apenas perto do pai. Do pai sumir de perto.

Era bom o colo de seu pai, mais confortável que da mãe e as outras mulheres que o punham em seus braços. O pai falava coisas, explicava outras, fazia com que o menino risse e sumia. E vinha o medo. O pai saía de novo.

Nessa época o pai viajava sempre. Trabalho. Sempre o medo.

Mas o menino tinha a receita de sumir com aquele medo. Corria pela casa. Ocupava os empregados em sua volta:
- Vem cá, menino!
- Sai da terra, menino!
- Não puxa o fio, menino!

Menino, menino, menino. Isso. Aquilo.

Tomou posse de áreas cada vez maiores da casa.

Desbravou o quintal, que clamou para si em todo seu esplendor de quintal cheio de plantas, insetos, passarinhos.

Falava com os passarinhos. Piu, piu, piu,... Não se interessava pela conversa de plantas e insetos.

Um dia, no alpendre da porta da cozinha, investigava uma mangueira de plástico amarelo e viu sair de casa carregando bolsas a moça que limpava a casa, o quarto do menino.

De dentro da cozinha ouviu os empregados dizendo que foi certo o feito. Gostava demais da moça o pai do menino.

Depois do dia em que ela foi embora, o pai do menino começou a sair menos. Viajar menos. Ficava mais em casa. Mais perto do menino. A mãe ficou sem sorrir.

O menino ficou com saudade do riso da mãe.

O pai ficou sem graça sem o riso da mãe.

Às vezes aparece alguém perguntando:
- Cadê o menino?
- Cadê o menino?

O menino longe. No quintal. Com os passarinhos.


terça-feira, outubro 05, 2004

OS MORADORES DE SANTA TERESA AMAM O BONDE

Pedro amava Mariazinha.

Desde que a viu sentada na escada que conduz ao saguão de entrada do edifício na rua Joaquim Murtinho, em que moravam ela e uma tia de Pedro, ele soube que a amava.

Naquele dia, Mariazinha segurava um aquário em que jazia morto um singelo peixinho dourado. Ali mesmo Pedro apresentou-se, oferecendo seu lenço para as lágrimas que ela derramava pelo terceiro peixinho dourado morto nos últimos seis meses. Dizia-se culpada e Pedro tentou demovê-la de tal idéia.

Pessoas que matam em seqüência peixinhos deixados sob seus cuidados em algum momento terminam por se julgar culpadas por tais mortes. Homens apaixonados são capazes de desculpar até mesmo a morte de peixinhos inocentes.

Uma semana e duas idas ao cinema depois, começaram a namorar. Parecia que haviam nascido para dividir suas vidas um com o outro. Falavam-se ao telefone cerca de quatorze vezes por dia, chamavam-se por alcunhas melosas e assistiam juntos às reprises do seriado Friends regozijando-se da vida repleta de aventuras dos protagonistas.

Ainda assim o romance dos dois encontrou seu fim.

Ao menos para Mariazinha, que foi quem propôs o término, angustiada com a responsabilidade de ter o amor de Pedro sob seus cuidados.

Parentes mais velhos gostam de proferir ditados. A mãe de Pedro dizia:

- Não há mal que sempre dure, nem bem que não se acabe.

Ao que sua avó retrucava:

- Não há bem que não se acabe, nem mal que não piore.

Pedro lembrava dos profundos ensinamentos de sua genitora e da genitora desta enquanto repetia para si mesmo que amava Mariazinha.

Resolvera voltar para casa, em Santa Teresa, a pé e, após subir a Cândido Mendes, caminhava a esmo pela Almirante Alexandrino pensando em seu grande amor e na inutilidade da vida, desnecessário capricho ante a fugacidade das paixões.

Achou uma grande tolice que existissem restaurantes abertos e que as pessoas almoçassem. Maldisse com a mesma intensidade as leis que preservam o patrimônio urbanístico e as permissões concedidas aos novos empreendimentos imobiliários. Desejou que as ruas não fossem tortas. Nem retas.

Distante, ouviu o barulho do bonde que subia a rua em sua direção.

Já estava, neste ponto, no Largo do Guimarães.

Já não se importava.

Julgou que seria belo se a vida retomasse parte de seu sentido pela obra de algo tão desprovido deste quanto os arcaicos bondes que ainda cruzam as ruas de seu bairro.

De costas para o bonde, olhos fechados, pôde identificar com precisão o momento de dar o passo para cima dos trilhos. Passo dado, sem volta, pôde ouvir os gritos e o inútil freio acionado pelo condutor do bonde.

Quando finalmente abriu seus olhos, teve tempo apenas de perceber nos trilhos fincados no asfalto o desvio tomado pelo bonde para evitar chocar-se com ele em alta velocidade.

Em seguida, levou o primeiro soco.

Os moradores de Santa Teresa amam o bonde, meio de transporte de grande parte dos que ali vivem. Os empregados da empresa que opera os bondes também amam o bonde. Dali sai o pão que alimenta suas famílias. Os que amam o bonde compartilham a crença de que acidentes envolvendo o bonde e seres humanos não são bons para a imagem do simpático meio de transporte. Igualmente, seres humanos, de um modo geral, não costumam nutrir grande apreço por aqueles que deliberadamente interrompem sua rotina diária.

Tão logo o bonde desviou de Pedro, parando alguns metros à frente, seu condutor e alguns passageiros iniciaram a surra que por pouco, não fosse a intervenção dos policiais que patrulham o Largo, não fez do frustrado suicida uma bem sucedida vítima de homicídio por espancamento.

Convalescente ainda, recuperando-se no Souza Aguiar, recebeu Mariazinha que, enquanto afagava-lhe o cabelo, repetia condoída:

- Tudo culpa minha... Tudo culpa minha...

E ele:

- Acontece, jujubinha... Acontece...